Flávia Martinelli
07/02/2020 04h00
Por Ariane Silva, especial para o blog MULHERIAS
Tem mulher em usina de produção de energia. Elas estão no RH, no setor administrativo, executivo, na faxina, na cozinha e também nas áreas técnicas, operacionais e braçais. Ainda que minoria entre os trabalhadores da Petrobras – 16% segundo dados de 2019 – marcam presença na defesa de direitos dos funcionários ou prestadores de serviços na empresa estatal de economia mista. E também de toda a população.
Em meio à greve nacional da categoria que dura sete dias, as petroleiras Ilnara Ferreira, de 30 anos, e Talita Alvarenga, de 34, explicam como hoje são definidos os preços dos combustíveis, incluindo o gás de cozinha, e como isso afeta a vida de todos e, em especial, a das mulheres. Ambas trabalham na Refinaria Gabriel Passos, no município de Betim em Minas Gerais; uma das 50 unidades da Petrobras que aderiram ao movimento.
Com mais de uma década de trabalho empresa, elas contam sobre a rotina de quem trabalha em turnos sem a certeza de conseguir voltar para casa e os motivos da greve nacional que, por hora, conta com a adesão de 20 mil trabalhadores. Eles trazem à pauta não apenas o próprio futuro profissional mas questionam os planos de privatização da maior empresa do país que, desde sempre, perseguiu objetivos sociais ou não-comerciais para o desenvolvimento do país.
O petróleo é nosso?
A Petrobras já foi a esperança do Brasil. Fundada em 1953 pelo então presidente Getúlio Vargas, com o nome de Petróleo Brasileiro S.A., a empresa cresceu internacionalmente na década de 70 e até 1997 detinha o monopólio estatal sobre o petróleo. Ou seja, apenas o Brasil poderia explorar as reservas encontradas em seu território.
No governo Fernando Henrique Cardoso isso mudou, com a abertura do capital da empresa para a iniciativa privada e a entrada de empresas estrangeiras na exploração do petróleo. Em 2007, a Petrobras anunciou a descoberta de uma mega reserva de petróleo no litoral do sudeste brasileiro, abaixo de uma camada de rochas e de sal. É o famoso “pré-sal”, que dedicava 100% dos royalties da exploração do petróleo para investimentos em saúde e educação por meio do Fundo Social do Pré-Sal. Ele teve suas verbas cortadas em 2019 pelo governo Bolsonaro, com a aprovação de uma lei que destina apenas 30% da arrecadação ao Fundo Social.
Apesar da excelência na produção e geração de receitas, também produziu escândalos de corrupção que trouxeram perdas estimadas em bilhões de reais para o país. Ainda assim, a empresa sempre foi reconhecida pela geração de empregos e boas condições de trabalho para os funcionários. Além disso, seus objetivos sempre estiveram atrelados a investimentos sociais, algo que empresas privadas não colocam à frente da crescente rentabilidade.
Hoje o cenário é outro e a atual greve nacional dos funcionários demonstra o que pode vir pela frente. O que motivou a greve foi, de cara, o desemprego. O governo anunciou da demissão de cerca de 1000 funcionários da Araucária e Nitrogenados, empresa do grupo Petrobras que produz fertilizantes. De acordo com a entidade que representa todos os sindicatos do setor, a Federação Única dos Petroleiros, o anúncio do fechamento foi feito sem diálogo com os trabalhadores e sem tentativa de negociar alternativas.
A greve, no entanto, tem o objetivo de proteger o patrimônio da Petrobras que, de acordo com os trabalhadores, está sendo desmontada para ser vendida. Quem defende a privatização argumenta que a iniciativa privada estaria melhor equipada para gerir com eficiência uma empresa do tamanho da Petrobras e que a concorrência diminuiria os preços dos combustíveis e a corrupção. O argumento é contestado pelas grevistas. Atualmente a empresa é de economia mista, ou seja, parte é do Estado, e parte de investidores privados. E tem lá, ainda que cada vez menor, investimentos em áreas sociais. Mas o governo Bolsonaro já declarou a intenção de transformá-la em uma empresa totalmente privada, sem a participação do país no seu controle.
Funcionária da Petrobras desde 2008, Talita levou a filha para a greve na porta da refinaria em Confins. “É para aprender a lutar pelos direitos desde pequenininha”, diz a mineira de Belo Horizonte que entrou no setor de operações, com jaleco laranja, e hoje trabalha no administrativo, fora do esquema de turnos. Técnica em química e formada também em Fisioterapia, chegou à empresa por concurso e conta que está em greve para defender os direitos da população, já que todos são afetados pelo preço dos combustíveis e o processo de desindustrialização do país.
Desindustrialização? Sim, no contexto da Petrobras, isso significa que refinarias tão operando abaixo da capacidade operacional para exportar o petróleo em estado bruto, como prefere o mercado internacional. Porém, o Brasil tem a matéria-prima e a capacidade de refino e acaba importando derivados do exterior.
Para Talita, o preço dos combustíveis deveria voltar a ser definido de acordo com o que os privilégios do Brasil nesse setor e a partir do que os brasileiros podem pagar e não o preço que é vendido fora do país, que é calculado em dólar, cada vez mais em alta. “Se o petróleo é do Brasil e as empresas que fazem o refino e a distribuição também, o preço poderia ser bem mais barato”, ela afirma. Inclusive do gás de cozinha, aponta.
Demissões e fechamento de indústria
Ilnara explica nenhum trabalhador prefere ficar sem trabalhar e que e elas e outros milhares de petroleiros estão parando agora para não parar de vez, com o fim de seus empregos. “É claro que a gente não quer chegar nesse ponto, a gente quer negociar, quer realmente conversar com o empregador, chegar num meio termo, mas nem sempre isso é possível”, diz a funcionária pública desde 2010. “Foi o meu primeiro emprego”, conta a mineira de Itaúna, do interior do Estado.
“Venho de uma realidade mais simples, tinha consciência de que para melhorar de vida, ter um conforto, só seria pelo estudo. Sempre me dediquei muito na escola pública, ia além do que me pediam. Em Belo Horizonte fiz curso técnico com apoio de bolsa do governo estadual e faculdade pelo Prouni federal”, conta.
Hoje Ilnara considera muito mais difícil para alguém como ela, de origem humilde, ter bom emprego e segurança de que vai ter a renda garantida no fim do mês. Grávida do segundo filho, passou 10 anos trabalhando “de turno”, no sistema de revezamento da Petrobras. São três os turnos: das 7h às 15h, das 15 às 23h e das 23h às 7h e quem trabalha nesse esquema só pode deixar o posto quando o próximo funcionário chega para trocar de lugar.
Se há qualquer problema como acidentes na rodovia ou faltas não comunicadas, a pessoa fica impedida de voltar para a casa e tem que dobrar o turno. “Nessas situações tem que acionar a família, ligar pro marido, avó, a gente sai pedindo ajuda”, conta. A situação tem se tornado mais comum com as demissões, que diminuíram o número de trabalhadores na empresa. Essa é uma das reivindicações das petroleiras.
Ela lembra que nessa greve, trabalhadores, incluindo duas mulheres, foram impedidos de sair dos postos por 60 horas, com a gerência se recusando a negociar a liberação dos trabalhadores com o sindicato.
Machismo: alguns ainda acham que a usina não é lugar de mulher
As duas petroleiras dizem que na carreira é necessário se impor. “O trabalho no setor de operações exige força e alguns acham que as mulheres não dão conta”, diz Ilnara. A verdade, completa, “é que nem os homens sozinhos dão conta e com frequência é preciso chamar colegas para conseguir operar as válvulas com segurança.” Essa visão se reflete na composição dos setores: dos 16% de mulheres que trabalham na Petrobras, a maioria está no trabalho de escritório, no setor administrativo. Nas operações, há ainda menos mulheres.
Talita, por sua vez, lembra que ao passar pela operação participou de eventos de manutenção com muitos funcionários. “É um trabalho muito trabalho, mais puxado, mais pesado. Debochavam de mim, achavam que eu não ia dar conta ou não levava a sério algo que eu tinha dito pra fazer”, afirma. Ganhou, com isso, a fama de mulher brava. “Falam mais isso das mulheres, né? Sempre se espera de uma mulher um comportamento doce. E nunca acham que podemos ser petroleiras.” Mas elas são. E sabem, como nunca, de sua importância para o todo o país.